Mutiplica-se nas redes sociais a expressão fascista aplicada a Jair Bolsonaro. Até de nazista Bolsonaro vem sendo xingado, o que, francamente, é disparate. E aviso, para desapontamento de muitos, que não sou nem mínion nem lulo.
Ressalva feita, passo à pergunta que não cala: Jair Bolsonaro é fascista? O caminho que escolhi para tentar responder à pergunta é trazer algo que dê sustentação conceitual e histórica sobre o fenômeno social chamado fascismo e saber se Jair Bolsonaro se enquadra nele. “Às armas, cidadãos!”
Antes, em homenagem à verdade e à honestidade intelectual, há um parêntese que deve ser aberto. Embora o mote da campanha de Jair Bolsonaro “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” tenha inspiração fascista, #EleNão é fascista.
Jair traz esse lema do Exército. Para a Infantaria em operação de guerra, “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” é como mão e luva, agulha e linha, pingo no “i”. Entretanto, retirar o bordão do contexto estritamente militar e aplicá-lo à Cidade (sociedade civil) é inadequado, pois o cidadão, o indivíduo pode ter sua esfera privada invadida ilegalmente pelo Corpo Orgânico Social (Estado, Nação, etc) e, se esse corpo está acima de tudo e é Deus que o sustenta, a pessoa de carne e osso grita por socorro e só encontra ouvidos moucos.
Não sei se Jair Bolsonaro tem essa nuance em perspectiva; desconfio sinceramente que não. Penso que seja mais o mantra que ele repete sem saber de seu alcance e dos desdobramentos que possam surgir. #EleNão é fascista por isso, uma vez que, para ser fascista é preciso atender a alguns requisitos em bloco e não apenas possuir um deles.
Fechando o parêntese e partindo para o “Dicionário Aurélio” encontrei:
“fascismo [do it. fascista] Adj. 2g. sistema político nacionalista, imperialista, antiliberal e antidemocrático, liderado por Benito Mussolini (1883-1945) na Itália e que tinha por emblema o feixe (em it. fascio) de varas dos antigos lictores romanos.”
Defender nacionalismo não torna ninguém fascista. Nesse sentido veja o que a professora de Ciência Política Evelyne Pisier escreve no livro “História das ideias políticas”:
“Em suma, se o nacionalismo francês afastou a França do fascismo, nem por isso deixou de forjar as origens francesas do fascismo.” (p.329)
Ou seja, nacionalismo sozinho não faz de ninguém fascista, porém fascismo sem nacionalismo não existiu na história. Jair Bolsonaro não é imperialista, não é antiliberal (Paulo Guedes e o programa econômico de Bolsonaro que o digam) e muito menos antidemocrático, pois ele está há quase 30 anos jogando o jogo eleitoral. Até onde se sabe, não consta que Jair Bolsonaro defenda certo tipo de gramscismo de direita, em que a democracia seria o remédio amargo inevitável para se alcançar algum tipo de governo autoritário.
Prosseguindo ainda com a professora Evelyne Pisier, gostaria de aprofundar o conceito do dicionário:
“O fascismo é, antes de tudo, um estatismo: ‘se liberalismo significa indivíduo, fascismo significa Estado’, grita Mussolini. ‘Tudo está no Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado’, tal é a divisa do movimento.”(p. 341)
De fato, Jair Bolsonaro foi estatista; hoje não é mais. Paulo Guedes, o guru econômico dele, é ultraliberal com cabeça modulada na Universidade de Chicago. Curioso que, neste aspecto, a esquerda brasileira é que tangencia o fascismo.
Avançando ainda mais na investigação, vamos ao prato principal – o estudo monográfico “Fascistas”, de Michael Mann. De início, o autor destaca claramente o lado esquerdo do movimento fascista:
“Inicialmente, eles eram em sua maioria esquerdistas não materialistas que aderiram ao nacionalismo orgânico.” (p.17)
“Coletivistas, eles desprezavam o individualismo amoral ‘do liberalismo de livre mercado’ e a ‘democracia burguesa’, que negligenciavam os interesses das ‘comunidades vivas’ e da ‘nação como todo orgânico.’” (p.18)
“O francês Valois escreveu que ‘nacionalismo+socialismo= fascismo’, e o inglês Oswald Mosley afirmou: ‘quem ama nosso país, é nacional, e quem ama nosso povo é socialista.’” (p.19)
“Os fascistas adoravam o poder do Estado. O Estado corporativo autoritário supostamente seria capaz de resolver crises e gerar o desenvolvimento social, econômico e moral, como enfatiza Gregor (1979)” (p. 27)
Difícil não se lembrar, de novo, da esquerda brasileira quando se lê o trecho acima.
Entretanto, o fascismo não foi um movimento apenas com ideias de esquerda e, por isso mesmo, não foi uma força política simples e unipolar como muitos acham. Ele se formatou com várias faces e cabeças, tal qual o cão mitológico, Cérbero. Prossigo com Michael Mann:
“Os fascistas rejeitavam as ideias conservadoras de que a ordem social vigente é essencialmente harmoniosa. Rejeitavam as ideias liberais e socialdemocratas de que os conflitos entre grupos de interesse são uma característica normal da sociedade. E rejeitavam também as ideias esquerdistas de que a harmonia só poderia ser alcançada pela derrubada do Capitalismo. Os fascistas tiveram origem ao mesmo tempo na direita, no centro e na esquerda, contando com sustentação em todas as classes (Weber, 1976:503).“ (p. 28)
Surpreendente?
De tudo o que foi mostrado, penso que se pode sustentar que #EleNão é fascista, apesar do “Brasil acima de tudo; Deus acima de todos”. De grande importância é o fato de o fascismo histórico ter sido um tipo de Kraken com seus tentáculos em círculo abarcando praticamente todo o espectro político. Uma vez que o fascismo tenha absorvido conceitos e ideias tanto de movimentos mais à esquerda como de grupos mais à direita, fica patente que a experiência histórica fascista tangencia, por óbvio, tanto esquerda como direita. E que, na verdade, a esquerda não pode atirar pedra no telhado de Jair Bolsonaro, exatamente por ela ter também, nesse quesito, telhado de vidro.
Por fim, despeço-me com Michael Mann:
“Na linguagem contemporânea, a palavra é usada sobretudo no xingamento ‘fascista’, invectiva vaga contra aqueles de quem não gostamos.”( p.483)
#EleNão é fascista!
Referências
FERREIRA, Aurélio B. de H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2ª ed. rev. e aument. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
MANN, Michael. Fascistas. trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2008.
PISIER, Evelyne. História das ideias políticas. trad. Maria Alice Farah Calil Antonio. Barueri-SP: Manole, 2004.
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